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«O entendimento é uma lanterna que necessita ir dirigida por uma mão, e a mão necessita ir mobilizada por um afã preexistente para este ou outro tipo de possíveis coisas. Em suma, só se encontra o que se procura.»
Ortega y Gasset, algures por aí
O pato é um animal pelo qual nutro um carinho muito especial. Começa pela cor: uma espécie de carmim-escuro, uma cor viva, imponente, que se destaca de todas as outras. Depois, tem aquela camadinha de gordura a rematá-lo, cujos charme e fofidez não podem ser negados. Se apresentado à minha pessoa lambuzado com mel, o carinho pelo animal transforma-se em amor puro e duro. Pode acompanhar com variadíssimos adornos, mas, para mim, sozinhinho é que faz sentido. Sozinhinho. Vá, uma verdurinha e uma conversinha ao lado, para não obcecar. Mas a vida às vezes é padrasta, já se sabe.
Poderia eu alguma vez imaginar o que me havia de acontecer há dias ao jantar? Zero. Mas a verdade é que, há dias ao jantar, puseram à frente das minhas extremamente aguadas papilas gustativas o estimado animal, e até aqui tudo muito bem. Agora, que a luz do dia me seja negra, se eu poderia imaginar o que ali vinha... A pobre criatura aparece-me à frente regada com uma argamassa cinzenta onde sobressaíam uns pontos amarelos. Acompanhava com uma espécie de papas de carolo mais duras e insonsas. Senti uma redução imediata de aguadice por parte das papilas batukativas. E cedo, à primeira garfada, digamos, percebi que declinar a moussaka e a espetada de vieiras com taglatielle salteada terá sido uns dos piores auto-erros deste ano. Com comida, percebi também nessa primeira garfada, todo o cuidado é pouco. Não se deve nem pode arriscar pratos com um grau de ambiguidade acima dos 20%. São desgostos que se estão a pedir, por Deus.
Mas vá, que nesta vida nem tudo são fígados cozidos à portuguesa. Por fortuna do destino, há precisamente esse mesmo número de dias, inclusivamente no mesmo jantar, em ex aequo com a degustação daquela moléstia em forma de comida, houve uns oito minutinhos de conversa que me permitiram continuar em frente. De repente, até dei por mim a dar mais uma hipótese àquela pérfida molhanga que nunca mais me desamparava a loja. Acontece que desenterrámos um medo comum a todos naquela conversa. Ui, ui, pois é. Descobríamos que, possivelmente, não houve personagem que tenha passado pelas nossas vidas mais temível que Joe o Índio. Joe, o Índio, que engraçado. Não falávamos de Joe o Índio, há mais de... seguramente, onze anos.
Nessa altura comíamos alface. Agora aburguesam-nos com rúcola.