Quase-preâmbulo
Há dias. Eixo Norte-Sul, sentido Sul, antes do Aqueduto das Águas Livres. Faixa do meio. 70 km/h. Estrategicamente posicionado ao meu lado, na faixa da direita, carro rebaixado, com molas de suspensão progressivas, iluminação da estrada por meio das luzes de néon, localizadas talvez no chassis, panelas com colectores de escape straight-through design, duplo tubo de escape de tipo boca-de-charroco com ponteira, pneus top performance Pzero Direzionale Yellow da Pirelli, jantes de liga leve 205/45 R 16, chip tuning, volante em pele tricolor fluorescente, pedais metalizados antiaderentes com respiradores espoletadores da condução em ponta-tacão, punhos do travão de mão em pele tricolor fluorescente, backets quitados, barra antiaproximação inferior quitada, aileron levantado meio metro em relação ao porta-bagagens, com abas supersónicas, tabelier quitado, cintos de segurança de quatro apoios.
Continuação da história
Condutor e respectiva acompanhante fazem sinais com as mãos. Pedem-me – entendo – para baixar o vidro.
Carrego no botão e o vidro desce. Reparo que têm o rádio sintonizado na Órbital.
Acompanhante. Com ar de semi-despreocupada. A apontar para o chão, semi-grita: “tens uma coisa debaixo do carro!”. Condutor. Ao lado. Com ar de “eu! eu!”. Intervém. Assustado, preocupado e ameaçador ao mesmo tempo. Com sede de espalhar sabedoria, berra: “PÁ, tu tens um saco de plástico enfiado no esqueleto da alavanca da maneta das velocidades! Cuidado!!”, enquanto gesticulava e abanava a cabeça. Com muita convicção.
Eu. Ao mesmo tempo que decifro a mensagem, tento manter o carro na faixa onde este se encontra. Levo a mão direita ao coração e vocifero: “Muito obrigada, muito obrigada. Obrigadíssima, obrigadíssima.” Assunto encerrado.
Assunto encerrado querias tu, fôfa. Um quilómetro à frente. Quase por baixo do Aqueduto das Águas Livres. Eu. Encostada à faixa da direita. Ainda a pensar no que significaria aquilo tudo. Ainda a pensar se virava para Alcântara e ia à Repsol tratar de saúde ou se não. Sentia insegurança. Saco plástico. Alavanca. Maneta. Morte. Tese. Ai. Sebem.
Tuner. Outra vez ao meu lado. Põe quatro piscas. Faz sinal para eu parar. Acompanhante-tuner. Calada, a olhar para a frente. Eu. Paro. Quatro piscas ligados. Tuner. Tadinho. Sai do carro. Manda-se para o chão. Deita-se na estrada, debaixo do meu carro. Tadinho. Tira o saco plástico do esqueleto da alavanca da maneta das velocidades. Ali fica dois minutos. Querido. Sai debaixo do carro. Vermelho do esforço. Esbaforido. Com o saco plástico na mão. Entrega-mo.
Eu. Levo a mão direita ao coração e vocifero: “Muito obrigada, muito obrigada. Obrigadíssima, obrigadíssima. Mesmo.” Tuner. Entra no respectivo carro. Acompanhante-tuner e tuner. No carro deles. Acenam. Eu. Aceno. Sem saber como mais agradecer. Sem saber que raio estava a agradecer. Saco de plástico na alavanca do esqueleto.
Proto-prólogo
Pode ser assim, o agradecimento: as boas pessoas também são tuneres.